terça-feira, 2 de maio de 2017

Entrevista

Mestre Márcia
Sangue Negro


Márcia José Vieira, Mestre Márcia, nasceu em São Gonçalo, no estado do Rio de Janeiro, em 18 de junho de 1962. Ela foi a primeira mulher a receber o título de mestre em sua cidade, um grande feito para quem,  na década de 1980, era uma das poucas meninas a frequentar rodas de Capoeira. 
Mesmo a contragosto de sua mãe e enfrentando o machismo presente na Capoeira, Mestre Márcia seguiu seu caminho, "Durante algum tempo era apenas eu em meu grupo. Me tratavam como uma peça intocável, mas quando eu acertava alguém, o atingido parecia que ia morrer por ter sido atingido por uma mulher.", contou. De posicionamentos bem definidos, Mestre Márcia também faz parte da Liga Gonçalense de Capoeira como tesoureira e é dirigente de uma escola de Samba. Achou pouco? Então vem conhecer a história dela mais de perto.

*A entrevista a seguir foi realizada em Abril de 2017 e é inédita e exclusiva do Blog Capoeira de Toda Maneira 


(Maíra Gomes) - Como a senhora começou na Capoeira?



(Mestre Márcia) - Comecei capoeira em 1980, no grupo Modelo Cultural Kikongo, com o Mestre Machado. Ele afirma que comecei no final de 1978, então, eu tinha 16 ou 17 anos.

(Maíra Gomes) - Sua família reagiu bem, te incentivaram?

(Mestre Márcia) - Minha mãe nunca disse para eu não fazer capoeira, mas não gostava. Nunca assistiu um treino, foi apenas a uma apresentação no teatro porque minhas tias disseram para ela que se elas iriam como tias, porque ela  como minha mãe não? Nunca esteve no espaço onde dou aula desde 1988 (minha mãe em memória). Tive o apoio de todos os meus irmãos, somos 10, só eu fazia capoeira até eu começar a dar aula. Hoje tenho vários sobrinhos, primos e etc. Nem todos comigo treinam comigo.

(Maíra Gomes) - Como foi sua caminhada até a fundação da Associação Sangue Negro?

(Mestre Márcia) - Não foi fácil. Durante algum tempo era apenas eu em meu grupo. Me tratavam como uma peça intocável, mas quando eu acertava alguém, o atingido parecia que ia morrer por ter sido atingido por uma mulher. Aí finalmente surgiu outra, juntas fomos ganhando espaço e os rapazes devagar começaram a aceitar mais quando eram atingidos. Isso dentro do meu grupo, mas nem sempre. Em roda fora baixava o desespero nos mestres quando eu atingia seus alunos. Era difícil admitir que a única mulher na roda poderia atingir um dos machões. Foi bastante tempo de só eu em rodas, dificilmente apareciam outras, mas sobrevivi. As coisas hoje não mudaram muito, os homens ainda acham absurdo ser atingido por mulher, muitas vezes é um deus nos acuda.

(Maíra Gomes) - A senhora foi a primeira mulher a ser formada mestre em São Gonçalo, um grande incentivo para outras mulheres, tendo a senhora como espelho, uma referência. Quem foi a sua referência feminina na Capoeira?

(Mestre Márcia) - Vi apenas três mulheres na primeira vez que vi uma roda de capoeira. Não chegou a ser uma referência, pois, não foram elas que me levaram a praticar capoeira, nem tive contato com elas. Raramente as vejo, uma até parou. Mas com certeza sou a referência de muitas mulheres.

(Maíra Gomes) - Porque decidiu fundar um grupo?

(Mestre Márcia) - Passei 7 anos na Kikongo. Saí de lá professora. Tive problemas com o meu mestre, o que me rendeu uma expulsão. Para não parar eu fui incentivada por amigos que queriam treinar comigo. Comecei a dar aula, fui parar em um grupo, ficando pouco mais de dois meses. Assim cheguei ao Mestre Chita, que tinha o grupo "Filhos de Omulú". Surgiram outros problemas, meus alunos eram na maioria de famílias católicas, então, conversei com o Mestre Chita e assim, numa  gincana entre meus alunos, surgiu o nome "Sangue Negro". Tenho o apoio até hoje do Mestre Chita e do mestre que me expulsou, Mestre Machado.

(Maíra Gomes) - Qual foi o maior desafio nesses anos de capoeira em um ambiente majoritariamente masculino, sentiu algum tipo de preconceito? 

(Mestre Márcia) -  O preconceito sobre a mulher capoeirista é demais. Meus alunos são cantados a todo momento e sempre escutavam "Vai ficar treinando com mulher". Recentemente tive um mal estar com um mestre, pois um rapaz que treinava com ele resolveu treinar comigo. Nossa, ele perdeu a compostura, ficou feia a coisa. Venho passando por situações assim desde que comecei a dar aula. É "osso", só gostando muito mesmo!

(Maíra Gomes) - O que a senhora pensa sobre os diversos sistemas de graduação existentes da capoeira? A graduação deveria ser padronizada para todos os grupos? 

(Mestre Márcia) - Eu gostaria que todos tivéssemos o mesmo sistema de graduação. Acho que enquanto isso não mudar, as pessoas que não se importam com a Capoeira vão continuar desvalorizando este esporte tão bonito e as autoridades chamando de bagunça. Eu uso o sistema da Confederação, colocando algumas pontas para ganhar tempo com os alunos.

(Maíra Gomes) - O que influencia mais na permanência da mulher na capoeira?

(Mestre Márcia) - As mulheres se entregam a Capoeira quando estão sozinhas, sem marido, namorado, nenhum relacionamento. Ou entram para a Capoeira exatamente para conquistar alguém. Por mais que gostem, acabam se afastando por começarem a ter problemas em sua relação, assim a Capoeira normalmente perde. Claro, existem exceções.

(Maíra Gomes) - A senhora é tesoureira da Liga Gonçalense de Capoeira. Como surgiu o convite para fazer parte da Liga?

(Mestre Márcia) - Eu sempre tive o convite para fazer parte da Liga, mas não queria. Apenas nesta gestão resolvi participar, mas já penso em sair. São muitos problemas e nada de verbas. Sem verbas, sem trabalho, mas os problemas surgem, não vale a pena tantas perturbações. 


(Maíra Gomes) - Qual a sua principal característica como educadora?

(Mestre Márcia) - As crianças costumam gostar de mim. Eu sou de tudo um pouco, canto, brinco, danço, conto da história, toco pandeiro, berimbau, atabaque, me divirto com eles. Porém, elas brigam, batem uma nas outras, mordem, sobem nas coisas, entre outras coisas que acontecem, aí Tia Márcia briga, as vezes coloca sentadinhas, mas não demora estamos nos beijando, nos abraçando, assim tudo é festa. Nos piores momentos da minha vida, entre elas a morte de minha mãe, foram eles que me ajudaram a superar, acho até que evitaram a minha depressão.

(Maíra Gomes) - Queria que a senhora contasse um pouco sobre a sua relação com o Carnaval:

(Mestre Márcia) - Eu sou dirigente de uma Escola de Samba, a G.R.E.S. Arco Íris do Boaçu, que é dirigida por sete mulheres, eu e mais 6 irmãs. É uma adrenalina gostosa colocar a escola na avenida, não tenho explicação. O que a Capoeira e o carnaval tem em comum? A alegria e o fato de eu não conseguir ficar longe dos dois.

Contato

Imagem de arquivo pessoal

Um comentário:

  1. Minha Mestra Márcia
    Tenho maior orgulho de ser aluno dessa mulher guerreira na capoeira e na vida!
    Mestre Henrique

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